Por: Janilton Sanejo

Primeiramente, devemos nos perguntar: qual é o sentido de “Intocáveis”? O que é esse intangível sugerido pelo título? A que se refere? Para pensarmos o seu ponto de vista, algumas questões preliminares se fazem necessárias: o que, de fato, ele nos apresenta? O que vai além das aparências e nos mobiliza a render-lhe uma audiência sensível e comprometida? O que nos captura, nos envolve e nos fala a tal ponto que algo, em nós mesmos, parece entrar em sintonia com as questões de cada protagonista? Qual é o discurso – ou os discursos – presente? A dinâmica que se instala entre Phillipe e Driss é mesmo viável?

É preciso considerar de antemão que há uma qualidade de doublespeak presente: duas linhas discursivas concomitantes ao longo de toda história. Ainda assim, uma não exclui a outra e ambas atuam de forma independente. A primeira, mais explícita, pontual e romanceada consiste na narrativa da bela história vivenciada por duas pessoas, que, apesar de suas diferenças e peculiaridades, construíram uma contagiante amizade. Por sua vez, a segunda linha discursiva nos demanda mais acuidade crítica e exige mais de nossa atenção, uma vez que é subjacente e se revela em suas intermitências – no deslizar dos “entre-significantes” que compõe a sequencia do filme – estabelecendo uma cadeia metonímica.

Intocáveis não é apenas um recorte cinematográfico sobre o cômico, no sentido da comédia que faz rir. A história que apresenta na primeira linha discursiva é um brinde à vida, uma Ode à amizade/ao companheirismo e, por que não?, uma ilustração sutil da via por onde a liberdade estaria acessível. E é a respeito do acesso à liberdade que devemos indagar: o que é veiculado na segunda linha discursiva, tendo em vista a natureza de nossos questionamentos? É aí que algo “intocável” emerge e repercute sobre cada espectador, sem ser notado.

A princípio, as diferenças são tantas e tão diametralmente opostas, que fazem crer intransponíveis em qualquer enquadramento lógico presente no laço social. Mas o que acontece, o que as dissolve? Não restam dúvidas de que é sob a influência de algo não perceptível a uma primeira apreensão que são invalidadas as antíteses que há entre esses dois sujeitos, suas frustrações, as culpas, os abismos sociais, culturais, econômicos.

Intocáveis exibe o que acontece quando as diferenças e os discursos segregadores são abolidos: um “verdadeiro encontro”, entre aspas. É preciso destacar que aí são corrompidos também os significantes que marcam a oposição entre o eu e o outro. Driss, o recém-saído do confinamento prisional, não é um usual candidato à vaga de emprego. Ao contrário dos demais, ele não possui o discurso tecnicista, vazio, que, por seu pragmatismo e superficialidade, é incapaz de alcançar o outro. Como diria Lacan, esse discurso comum, feito de palavras para não dizer nada. Não, seu discurso é outro.

Mas o que ele tem a oferecer? Ele não tem qualificação, não tem experiência, não tem referências, e, ao menos num primeiro momento, também não tem interesse naquele trabalho. Entretanto, se possui algo tangível em uma relação de trocas, é a si mesmo em sua densidade existencial. Assim, desde o primeiro momento fica patente que seu discurso traz uma marca singular, algo que o coloca num outrotopos, numa dimensão em que ele não apenas está ali, ele está aí. E é por estar aí, no sentido heideggeriano, que ele pôde ocupar o lugar de outro e se colocar no mesmo patamar em que se encontra Phillipe, solitário em sua tetraplegia do vínculo.

O que é apresentado desde então pode ser abreviado como uma sucessão de tiradas espirituosas que, pouco a pouco, produzem o desvelamento de uma cumplicidade e de uma conformidade psíquica tão abrangente, tão convincente, que seduz o espectador. Tudo parece funcionar num acoplamento perfeito, em que as diferenças não mais existem. Aqui é preciso perguntar: qual é o papel da diferença na estrutura psíquica? Nesse sentido, é indispensável lembrar que o traço unário é o pórtico e a matriz de toda diferença, assim como de toda condição de sujeito.

 Os dois protagonistas passam a se tratar reciprocamente como a dois familionários, sendo um o Outro do outro e vice-versa. Testemunhamos então uma erupção de alegria, uma hercúlea alavancagem da pulsão de vida que dinamiza os personagens e faz vibrar o espectador, que reencontra neles, seus próprios anseios contidos sob a barra das negatividades. E, assim, a tetraplegia, contornada pela fala chistosa, pelas palavras que levam a um “para-além” da Lei, se torna castração simbolígena e os dramas, os desencontros e os problemas de ambos são destituídos de seu caráter conflitual. Gradualmente, vemos surgir no lugar do mais-de-gozar, um “mais-a-gozar” ilimitado, que é confirmado pelo espectador através do riso e do júbilo encontrados em cada um daqueles saltos de espirituosidade.

Se todo discurso parte do Outro, conforme nos assevera Lacan, então, supõe-se que as diferenças desempenham papel imprescindível na estruturação da singularidade. O que podemos esperar da dissolução das balizas que diferencia cada um? Derrida já dizia que é a diferença que faz emergir a presença do outro. Todavia, a lethea de Intocáveis vai num sentido oposto e a apologia a um liberalismo psíquico subjaz na segunda linha discursiva.

Isso se estabelece em relações lógicas ao observarmos a metonímia que segue o andar da história, em que o discurso generalizante de nossa época ganha o status de grande Outro e passa a articular a dissolução do singular singularíssimo, que, por sua vez, dá lugar a uma massa coesa de sujeitos indefinidos. Cabe aqui outra questão: até onde iria a relação estabelecida pelos dois protagonistas? Na perspectiva da pulsão, para onde aponta esse vínculo? O que se sabe, é que após o período retratado no filme, cada um buscou, ao seu modo, um caminho por onde voltar a sua singularidade, as suas faltas constitutivas. É premissa evidente que o sujeito, num princípio intrínseco a sua própria constituição, deriva-se de uma marca que o diferencia do outro, o traço unário que delineia o seu ser no mundo.

E o que falar da relação estabelecida pelos protagonistas com a Lei, lei com “L” maiúsculo, esta que representa a interdição harmonizada pelo nome-do-pai? Várias cenas/falas fazem saltar os significantes que compõem a metonímia e elucidam essa subversão da Lei: a desconsideração grave das normas de trânsito, rebaixando a vida do outro a algo de importância diminuta; dispor da autoridade policial como de um utensílio da própria conveniência; conceber o corpo do outro como a carne da própria satisfação – o que está representado na cena das prostitutas e nas investidas cruas e dissimuladas que Driss dirige à Magalie; a supressão das premissas do pacto social, uma vez que o objeto “a” não tem barra e é marcado por um caráter imperativo; a sobreposição do eu aos interesses da coletividade, como na cena da ópera. Então é nesse nível que temos de encarar a controvérsia acerca da concepção de liberdade e de gozo pulsional veiculada na segunda linha discursiva de Intocáveis.

Outro aspecto que reforça essa esquize da Lei é a maneira como as drogas são abordadas. De um lado, o primo-irmão de Driss é preso por ser pego portando alguma substância ilícita. A Lei para ele existe e intervém. Por outro, a festa de aniversário de Phillipe conta com os coloridos e atenuações da maconha, que faz o background de um momento em que resplandecem a alegria e a vida. A trilha sonora, impecável, magistralmente escolhida, proporciona notável intensificação desses momentos em que a lei deixa de valer para todos e entra em estado de suspensão. Que mensagem está sendo passada aí?

 Escapar às interdições e suplantar a falta é uma fantasia in-sistente no imaginário de todo sujeito clivado. Talvez, daí se originem os fios que nos atam a essa empolgante história: fazer com que o Um e o Outro sejam uma única e mesma coisa. Uma visada mais ponderada basta para que se perceba o sujeito da completude implicado aí, de forma astuciosa e quase imperceptível, surgindo com sua não-diferença no horizonte do dasein tole-nakachiano (em menção aos diretores Eric Toledano e Olivier Nakache ).