Estamos na segunda década do século XXI. Mas, como profissionais que atuam na manutenção da uma saúde mental e social, pensamos como há cem anos. Psicanalistas que somos, paramos no tempo, e ainda trabalhamos estruturas psíquicas dentro de teorias engessadas, criadas durante uma reflexão do funcionamento de famílias tradicionais. Quando Freud surgiu com a metapsicologia, os divórcios eram raridades; mães solteiras viviam à mercê da sociedade; pais raramente assumiam a criação de filhos por si sós, precisando de novos casamentos para o retorno à estrutura padrão de família. Como podemos, então, manejar a clínica psicanalítica dentro das famílias pós-modernas, como por exemplo, as homoparentais? O que dizer desta atuação, onde a teoria é obsoleta e os questionamentos tímidos e sutis em relação às necessidades, dificuldades, sofrimentos e vivências desses sujeitos? Estas famílias existem, são legítimas, não podem ser negligenciados por nós.

A necessidade que desenvolvemos de nos apoiar em classificações de gênero é hoje superficial e ultrapassada. Um fóssil herdado da eugenia, derivada deste impulso primitivo de classificação por etnia, por credo, pelo que difere. Enquanto a dinâmica do desejo, a marca primeva da busca humana exaustivamente apontada por Lacan por um objeto pequeno “a”, vigora nas mais diversas formas, e é atual como nunca antes o foi. Não temos mais a necessidade psiquiátrica de uma rotulação, embora esperneemos para mantê-la viva, para o orgulho de Kraeplin e dos nazistas.

Freud tentou alertar os futuros analistas para esta questão. Mas a psicanálise não se ocupou desta realidade. O clero (representado por quase todas as suas interpretações) mantém sua postura retrógrada e contraditória diante destes que deveriam ser aceitos em qualquer casa. Ora, não são os homossexuais filhos do seu Deus? Em um equívoco grotesco tratam o homossexualismo como a peste, um “desvio de comportamento”. Existem ainda aqueles que vendem uma promessa de “cura” para algo que se trata apenas de uma simbolização identificatória com uma das figuras parentais.

Hoje o mundo pertence a estes neo-humanos. As famílias modernas aparecem estruturadas nas mais variadas configurações. Dois homens, duas mulheres, um homem, uma mulher, e seus filhos e filhas. Devemos evitar o labor ignorante de questioná-las como estrutura familiar, embarcando em discussões inúteis, preconceituosas, pseudo-moralistas e não laicas sobre a real legitimidade ou estabilidade emocional destas novas famílias. Devemos sim, reconhecê-las.

A ARPI se nomeia refundadora. Refundadora da thesys analítica. Isto quer dizer que não podemos nos dar o luxo de nos conformar com a theoria. Estamos aqui para importunar, chacoalhar as fundações da ciência marginal freudiana e atuar uma clínica baseada na ética criada em Freud/Lacan. Lançar mão da empatia, do não-julgamento, da

escuta flutuante, da associação livre de ideias e do tempo lógico, de modo a atender a real demanda dos nossos tempos: o sofrimento vinculado ao ser-no-mundo de Heidegger. A cruzada humana de sobreviver em um mundo doente, acelerado, psicótico.

Cabe a nós como refundadores assumir esta realidade e construirmos a partir da clínica destes sujeitos uma nova teoria. Uma nova prática. O édipo mutou: ele não pode ser visto como a estática representação de um pênis, uma vagina e uma criança. Ele é agora simbolizado por sujeitos atuantes e pela sua subjetiva dinâmica de desejo, de simbolização. Ele deixou de ser um tripé e se aproxima como nunca do nó borromeu.

Nossa proposta é erguer publicamente esta bandeira. Escancarar a hipocrisia da ciência rotulatória e determinista. Assumir estas vítimas de preconceito de gênero, vítimas de oportunistas, de psicóticos e enrustidos, que enxergam nestes homens e mulheres um pedaço seu que lhes incomoda, que gargalha deles em seu ódio injustificável.

É nossa responsabilidade assumir estes sujeitos renegados. É responsabilidade da ARPI declarar o seu amor por eles e, como Freud, que estruturou sua teoria com a ajuda de suas histéricas, estruturar uma nova teoria com a ajuda destes novos humanos, salvando assim, a psicanálise do abismo ortodoxo e silencioso onde ela se encontra hoje.

Obrigado.

Leonardo Ipê Pinheiro Guimarães – Psicólogo e Psicanalista

Luiane Daufenbach Amaral – Psicóloga e Psicanalista