Por  Horácio Friedman, para o Seminário da ARPI de 6/12/2017

I. Alguns dados técnicos sobre o filme

Título Original: The Hours
Título no Brasil: As Horas
Direção: Stephen Daldry
Gênero: Drama (mais do tipo Ingmar Bergman do que estilo Hollywood). “A vida é chata” – paródia a “A vida é bela”
Ano de Lançamento: 2002
Duração: 114 min
País: EU

Roteiro: O script é uma adaptação de “The Hours”, romance de 1998,  do estadunidense Michael Cunningham, vencedor do Prêmio Pulitzer de ficção de 1999. “The Hours” apresenta porém intertextualidade com o romance “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf, publicado em 1925, considerado pela Time e pelo The Guardian um dos melhores livros da língua inglesa. Nele, Virginia narra um dia na vida de Clarissa Dalloway, socialite ficcional que vive em Londres após a Primeira Guerra Mundial.

 

 

II. Sinopse

 

Em três períodos diferentes vivem três mulheres ligadas ao livro “Mrs. Dalloway”. Em 1923, na Inglaterra, vive Virginia Woolf (interpretada por Nicole Kidman), autora do livro, que enfrenta uma crise de depressão e idéias de suicídio. Em 1949, vive Laura Brown (interpretada por Julianne Moore), uma dona de casa grávida que mora em Los Angeles, planeja uma festa de aniversário para o marido e não consegue parar de ler o livro . No final do século XX, vive Clarissa Vaughn (Meryl Streep), uma editora de livros que vive em Nova York e prepara uma festa para Richard, escritor que fora seu amante no passado e hoje está com AIDS em fase terminal. Clarissa e Richard são também os nomes do casal central no romance “Mrs. Dalloway”. Assim, em “The Hours”, Virginia Woolf escreve “Mrs. Dalloway'” na Inglaterra de 1923, Laura Brown o lê na Los Angeles de 1949 e Clarissa Vaughan o vive na New York do final da década de 1990.

A narrativa é sobre um dia na vida dessas três mulheres, portanto abordando épocas e contextos sociais diferentes. Contudo, as três histórias vão sendo apresentadas não de maneira sequencial, mas entremeando cenas do dia de cada uma. Assim, desde o início o filme pode gerar uma certa perplexidade, uma sensação de desconexão das três narrativas e dificuldade de compreensão no espectador que talvez procure encontrar paralelos, pontos de convergência e similitude entre as três mulheres. O estilo literário de Virginia Woolf, de narração “em fluxo de consciência”, é preservado no livro de Cunningham e no filme de Daldry, cada cena buscando captar os pensamentos das três personagens.

 

As cenas do suicídio de Virginia Woolf abrem o filme, em conformidade com o prólogo do livro de Cunningham que procura descrever pormenorizadamente o trágico final da escritora e a carta de despedida repleta de gratidão que ela deixa ao marido.

 

A seguir, no livro e no filme, seguem-se alternadamente cenas de Virginia, Laura e Clarissa, iniciando-se pela manhã, cada qual com o seu desjejum.

 

Para efeito de discussão, cada personagem é apresentado individualmente de início a fim de sua trajetória na história.

 

Virginia está em Richmond, subúrbio de Londres, em 1923, escrevendo os primeiros parágrafos de seu romance “Mrs. Dalloway”, sobre uma mulher que prepara uma festa. Desde garota, Virginia vem sofrendo de períodos de alteração de humor, depressão, alucinações auditivas e cefaléia. Em seu histórico, há tentativas de suicídio, internações em hospitais, relação conflituosa com os médicos. Sua pulsão de vida reside essencialmente em sua atividade de escritora. Sua saúde é motivo de preocupação constante de seu marido, editor e também escritor. Para ele, Virginia é extraordinária e sua obra ficará para a posteridade. Levou-a para um subúrbio londrino na tentativa de proporcionar-lhe uma vida mais tranquila e insiste de modo particularmente intenso para que ela se alimente adequadamente. Virginia tem um cômodo próprio, com o que o marido procura enfim, criar uma atmosfera propícia ao trabalho da escritora, que via as mulheres ao longo da história como sem um espaço próprio no lar, submissas ao marido e ao resto da família, como que de plantão na casa, para servir os demais. Contudo, pelo menos nessa fase narrada no filme, a vida é desprovida de alegria, de emoções, monótona, exceto pela implicância de Virginia com a sua cozinheira. Há porém os preparativos para uma recepção. Haverá a visita de Vanessa, irmã de Virginia, que chega acompanhada por seus filhos, dois adolescentes mal-educados e uma menina curiosa com a personalidade da tia. A visita termina prematuramente e Virginia despede-se de Vanessa com um beijo na boca, que parece surpreender a ambas. Curiosamente, no livro que Virginia escreve, a personagem Clarissa Dalloway tem como primeiro amor uma garota com personalidade similar à de Vanessa.

Posteriormente, Virginia decide voltar a morar em Londres e dirige-se à estação de trem sem avisar Leonard. Este contudo, percebe a situação e a surpreende na estação, convencendo-a a voltar para casa, mas cedendo à ideia de se mudarem novamente para Londres. Virginia continua a escrever o seu livro e um de seus impasses é a necessidade de matar um personagem, focando especialmente Clarissa Dalloway. Questionada por Leonard, ela replica que alguém deve morrer para que os outros valorizem mais a vida.

 

Sentimentos de deslocamento/”misfit”, asfixia, opressão? Busca em Londres novos ares, estímulos de pulsão de vida, alegrias, novas perspectivas.

 

Já Laura Brown, outra personagem do “The Hours”, tem vida doméstica, num subúrbio de Los Angeles, no pós-Segunda Guerra Mundial, casada com um ex-combatente reverenciado como herói. É mãe de Richie, um menino de três anos e está grávida novamente. Seu marido Dan é bastante atencioso com ela, mas a vida parece insípida também nesse segmento do filme. Ela não parece muito competente em suas atividades. É dia de aniversário de Dan, mas quando ela acorda, ele já preparou o desjejum e ainda comprou flores. Ela tenta preparar um bolo de aniversário pela manhã e Richie procura participar da preparação, mas o bolo não fica bonito. Recebe então uma visita-surpresa de sua vizinha Kitty, que tem uma personalidade mais autoconfiante e extrovertida, qualidades que Laura parece invejar. Contudo, o motivo da visita é que Kitty recebeu o diagnóstico de tumor uterino, deverá se internar no hospital e quer lhe pedir para que ela cuide de seu cão. Seguem-se tentativas de Laura de expressar solidariedade e esperança à vizinha e aproximando-se num abraço, acabam as duas tocando os lábios. Kitty recua com gentileza. O menino acompanha a cena. Provavelmente percebe o sentimento de solidão da mãe. As duas mulheres despedem-se como amigas, deixando porém Laura perturbada pela vivência. Laura prepara um novo bolo. O outro jogara no lixo. Tenta descansar. ler o livro “Mrs. Dalloway”, mas não consegue se concentrar. Quer se ver livre da casa, do bolo, do filho. Sente que fracassou, que é errada, inadequada. Quer ficar sozinha. Pega o carro, deixa o filho com uma cuidadora e dirige a esmo por Los Angeles até se decidir por um hotel. Sente-se um pouco vitoriosa ao conseguir fazer o check-in e acomodar-se num quarto somente seu, onde pode fazer o que quiser. Há uma sensação de liberdade, de alívio das dores de sua alma, do alívio que a morfina traz a quem sofre as dores de um câncer. Deitada na cama, volta a ler “Mrs. Dalloway”. Ela pode inclusive se matar nesse quarto de hotel. Trouxe suas pílulas para concretizar o ato. Contudo, pensa no mal que causará ao filho e ao marido e na morte do bebê que carrega no ventre. Desiste do suicídio. Volta para apanhar seu filho e vão para casa. Celebram o aniversário do marido, uma festa um tanto melancólica a três. Mais tarde, Laura tenta se demorar no banheiro, em lágrimas de tristeza enquanto o marido aguarda por ela no leito nupcial à espera do último presente desse dia de aniversário. É quase a função burocrática do servir sexual da mulher para com o marido. Convencional, insípido, sem emoção. Justifica a busca de carinho no beijo dado em Kitty.

 

Sensação de deslocamento/”misfit” (não é a casa dela, ela é “funcionária” do marido, cidadão perfeito, herói de guerra; vai para o hotel, onde sente-se livre); asfixia, opressão, falta de alegria, de perspectivas, de estímulos de pulsão de vida.

 

A terceira personagem do filme, Clarissa Vaughan, na Nova Iorque dos 1990s, prepara a festa que dará às cinco horas  em seu apartamento em Greenwich Village. A festa será em homenagem ao seu ex-companheiro, Richard, que às oito horas da mesma noite receberá um prêmio por sua obra poética. Clarissa sai de manhã em busca de flores para o evento. Em seguida, visita Richard, que se encontra numa situação muito difícil, caquético, em fase terminal de AIDS. Clarissa, a quem Richard jocosamente sempre chamou de Mrs. Dalloway tenta animá-lo para a festa, mas no diálogo que se segue o discurso do amigo transborda sentimentos de derrotismo, de fracasso e desânimo. Ele considera que a concessão do prêmio foi mais um gesto de caridade  do que um reconhecimento profissional. Ele reluta em comparecer à festa. Clarissa tem de deixá-lo para continuar os preparativos, mas o faz após enérgicas afirmações positivas de que o aguardam para a homenagem. Mais tarde, já em seu apartamento, Clarissa recebe a visita de Louis, que fora companheiro de Richard antes de Clarissa. Rememoram seus relacionamentos com Richard. Clarissa vive há 18 anos com  sua namorada Sally. Julia, a filha de 19 anos de Clarissa mora com elas. Percebe-se no filme a expansão da liberdade de opção sexual, em contraste com os períodos vividos pelas duas personagens anteriores. Terminados os preparativos para a festa no apartamento, Clarissa sai novamente para ver Richard e prepará-lo para os eventos. Quando está no apartamento de Richard, este senta-se sobre o peitoril da janela aberta voltando a expressar seu desânimo, afirmando que não suportará a festa e a premiação. Clarissa pede-lhe para descer do peitoril e que ele não precisa então comparecer aos eventos. Richard insiste que depois virão outras horas difíceis de suportar, diz que a ama e que não crê que outro casal possa ter sido tão feliz como eles foram. Assim dito, desliza janela afora e despenca ao longo do prédio em direção à morte. Após o triste retorno ao seu apartamento, Clarissa recebe uma visita muito especial, a mãe de Richard, nada mais nada menos do que Laura Brown, a personagem dos 1940s, que tentou o suicídio, mas fugiu para se tornar bibliotecária em Toronto e sobreviveu a todos, a seu marido levado por um câncer, sua filha atropelada por um motorista bêbado e agora Richard, seu Richie, que consumou o suicídio. A conversa é pobre em conteúdo. Pouco há que se falar.

 

Clarissa parece-me o veículo para conhecer melhor Richard que é o personagem que vive a questão da falta de estímulos de pulsão de vida, de deslocamento/”misfit”, de asfixia e opressão.

 

 

O filme aborda assim, a questão das motivações ao suicídio,  homo e bissexualidade e alguns ângulos não usualmente discutidos do papel da mulher na família e na vida profissional, mas fundamentalmente no meu modo de ver, o “misfit” – a sensação de não pertencer àquele mundo, além da falta de estímulos de pulsão de vida, de alegria. A vida torna-se “chata”. A morte passa a ser uma alternativa melhor do que a vida.