Por Fernando Igrejas

A comédia da diretora Julie Delpy, de pronto, nos revela a relação nutrida de ciúmes do jovem Lolo, de 19 anos, por sua mãe. Uma superficial observação da obra, caso permitamos que o riso do chiste da obra nos distraia, pode nos enganar e fazer com que consideremos que o conflito afetivo – uma problemática edipiana, posto que há um conflito na tríade amorosa formada por Lolo, sua mãe e os namorados dela –  se restringe à existência de uma simplória relação conturbada por causa de um garoto mimado e enciumado pela mãe. Desse modo, esta primeira concepção – do reconhecimento de que existe sim uma perturbação afetiva e psíquica entre Lolo, sua mãe e aos namorados dela – torna-se o encetamento o qual nos permitirá outras interpretações acerca destas mesmas questões. Para tanto, nos serviremos das conceituações e contribuições psicanalíticas de Melanie Klein e D. Winnicott.

É tentador e muito válido ater nossas atenções e esforços de compreensão aos aspectos e à dinâmica da tríade edipiana existente entre as personagens da obra, porém, o filme permite outras chaves de interpretação. O sentimento de rivalidade acirrada e odiosa que Lolo nutre contra todos os pretendentes e namorados da mãe deixa evidente a angústia empregada na competição pelo amor materno. Por outro lado, não menos interessante e válido, o filme propicia informações e detalhes – poucos, diga-se de passagem – como se fossem significantes que o diretor deixasse escapulir no decorrer do seu discurso, aptos a serem capturados por nossa escuta flutuante e atenta. São estes os significantes que consideraremos sob a ótica da psicanálise da escola inglesa, ainda que inseridos na ribalta edipiana, na tentativa de descobrir mais a respeito da complexidade íntima das personagens, especialmente entre Lolo e sua mãe.

Sendo assim, o significante – ou a cena do filme – que me chamou a atenção de forma mais emblemática e contundente, e a qual proporcionou o início da elucubração e construção da presente análise, se deveu à passagem de quando Lolo, no tempo em que era bebê, fora subtraído pelo pai dos braços de sua mãe e arrancado a contragosto do seio materno enquanto ainda era amamentado. Tal episódio é narrado numa cena muito rápida – um flash back, uma rememoração arcaica evidenciada pela escolha do frame preto e branco – a qual o diretor deixa escapar, como um significante que escapa, o que não se deve deixar passar batido na escutada do divã: a angústia da amamentação interrompida.

Ao longo da história, as concepções acerca do papel desempenhado pela figura materna sofreram transformações em decorrência do modelo vigente de cada sociedade. Desde a Antiguidade já existiam preocupações acerca da alimentação do bebê.A história do homem e os fundamentos da psicanálise há tempos reconhecem o processo de amamentação como fator estruturante dos vínculos afetivos humanos. Sigmund Freud e sucessores da teoria psicanalítica são unânimes em reconhecer a importância das primeiras relações objetais como base para o desenvolvimento emocional e afetivo do infante. Por consequência, as primeiras relações da criança com o mundo externo que a cerca, formada por meio da oralidade – a amamentação –, bem como do carinho e dos cuidados maternos, são elementos primordiais os quais contribuem para o seu desenvolvimento afetivo e psíquico, possibilitando-lhe estabelecer os alicerces de sua futura vida emocional na fase adulta.

As mães egípcias priorizavam a prática da amamentação como fator indispensável para o desenvolvimento saudável do filho, especialmente o aleitamento dos filhos varões. O aleitamento prolonga-se até o terceiro ano de vida do bebê. Somente muitos séculos mais tarde, por meio da influência e difusão da cultura helênica, as primeiras mamadeiras foram usadas no Egito. Todavia, ainda eram desconhecidos os efeitos psicológicos decorrentes do contato materno-filial.

Na Idade Média, utilizando-se da filosofia e dos ideais iluministas do século XVIII, o filósofo Jean Jacques Rousseau já acreditava na importância da amamentação como via de construção das bases afetivas humanas.

Podemos constatar que, apesar do aleitamento ter sido considerado uma prática importante ao longo de toda a história da humanidade, o estabelecimento do vínculo mãe-bebê ainda uma relação precária.Na cultura hindu, a amamentação possuía grande valor para a alimentação infantil. As classes aristocráticas utilizavam amas-de-leite cuidadosamente selecionadas.  Idade, casta, cor, caráter e formatos dos seios e mamilos eram detalhes levados em consideração na escolha. No Brasil, as senhoras brancas entregavam suas crianças para serem amamentadas por escravas sadias.

Freud afirmou existir uma parte da mente humana que se desenvolve na mais tenra idade. Assim, sentimentos e fantasias são capazes de imprimir suas marcas no inconsciente da mente, permanecendo ativas e exercendo uma influência contínua sobre a vida emocional do sujeito.

Na abordagem psicanalítica, a concepção de fase implica no modo de relação do indivíduo com o seu meio. Na fase oral, esta relação é caracterizada pelo ato de deglutir, proveniente do contato da criança com o seio materno. Nesse momento, o mundo do bebê permanece centralizado em torno da oralidade, prazer e desprazer serão manifestações totais. O leite satisfaz o estado de necessidade orgânica – fome –, porém, e ao mesmo tempo, ocorrerá um processo paralelo de natureza sexual caracterizado pela excitação dos lábios e da língua pelo seio, produzindo uma satisfação que não se reduz ao processo de saciedade orgânica, apesar de encontrar nela o seu apoio. Desse modo, o objeto do instinto é o alimento, enquanto o da pulsão sexual é o seio materno (MELANIE KLEIN).A fase oral é a primeira etapa de evolução sexual, estando o prazer ligado à ingestão de alimentos e à excitação dos lábios e da cavidade bucal.

Após o primeiro ano de vida, desenvolve-se a fusão da noção de seio bom e seio mau como provenientes de uma mesma pessoa, a mãe.As relações com objetos externos têm início com o amor que a criança dirige ao seio materno. Numa fase posterior, o infante reconhecerá a mãe e o mundo externo e direcionará o seu amor a esses objetos. Este processo desenvolverá as bases para a sua vida afetiva na idade adulta.

De acordo com a teoria kleiniana, a noção de seio bom é caracterizada pelas experiências gratificantes de amor e de saciedade recebidas da mãe, ao passo que a noção de seio mau e frustrador refere-se às experiências reais de privação e sofrimento, as quais são sentidas pelo bebê como forma de perseguição, expressa na fantasia pelo medo de ser aniquilado.

Retomando, o bebê reconhece a mãe como um único objeto após o primeiro ano de vida, ou seja, o bebê começa a reconhecer a mãe como uma pessoa total com existência própria e independente, fonte de experiências boas e más. A criança compreende pouco a pouco que é ela quem ama e odeia a mesma pessoa, sua mãe.

“Para que a posição Esquizoparanóide ceda lugar gradualmente à posição Depressiva, a precondição necessária será a predominância das experiências boas sobre as más. Quando isso acontece, o ego do bebê adquire crença na prevalência do objeto ideal sobre os persecutórios, ocasionando maior força e capacidade para enfrentar as ansiedades sem recorrer a mecanismos de defesa violentos. O medo dos perseguidores e a cisão dos objetos diminuem, havendo uma diferenciação do ego em relação ao mundo externo” (MELANIE KLEIN).Nesse cenário, surge o que Melanie Klein definiu como ansiedade persecutória, na qual os impulsos são sentidos pelo medo do aniquilamento e pelo desconforto da fome. Esta é a posição Esquizoparanóide.

Percebemos que um prelúdio da formulação da estrutura psíquica de Lolo, neste momento, parece tomar forma. O desmame forçado de Lolo, pelo pai, provocaria, no infante, consequências desequilibradas no futuro.

O ser humano dirige seus sentimentos mais profundos de amor e ódio para a mãe, representada pelo seio. Num momento posterior, com o amadurecimento físico e o desenvolvimento das relações afetivas com a figura materna, a criança passará a investir o seu amor e o seu ódio às pessoas mais próximas: pai, irmãos e pessoas de seu convívio, dando início aos sentimentos de amizade e de carinho dirigidos aos novos objetos do mundo externo (MELANIE KLEIN).

Para que se estabeleça um equilíbrio psíquico satisfatório, é necessário que o bebê aprenda a lidar com os sentimentos conflitantes de amor e ódio. Se a criança consegue estabelecer internamente a mãe boa e prestativa, esta exercerá influência benéfica para o seu desenvolvimento, pois isto contribuirá futuramente para a formação de vínculos amorosos. Por outro lado, se houver a internalização do objeto mau e frustrador, os futuros vínculos estarão prejudicados, pois as primeiras relações com a figura materna foram insatisfatórias.

Portanto, podemos compreender que os conflitos não solucionados da primeira infância desempenham papel crucial nos relacionamentos afetivos na vida futura do sujeito.

Finalmente, o que percebemos em Lolo? Situações primitivas de desejos insatisfeitos, de voracidade e ciúmes. Percebemos também a presença constante de relacionamentos desarmoniosos – Lolo não consegue prosseguir em seus namoros –, sentimentos de agressividade contra os namorados da mãe, possessão e exigência extrema para com o objeto amado, a própria mãe. Lolo internalizou a angústia do seio mau, frustrante, e ficou apenas com ele.