Por Janilton Sanejo

 

Esse é um filme cuja poesia e arquitetura nos abre amplo espaço para a construção de saberes acerca pensar psicanalítico. Ali, tudo se reveste de uma dimensão significante. Sem a pretensão de percorrer esse vasto campo, gostaria de me ater a um dos eixos possíveis, este que toca o real da morte: O quarto do filho põe em cena o trabalho do luto, de um lado, e do outro, nos questiona acerca do próprio lugar do analista.

O que caracteriza esse lugar, o lugar do analista, – vale lembrar – é uma questão que acompanha toda a trajetória de Lacan: o que faz de um analista analista? O que sustenta a articulação do suposto saber com o suposto desejar e provê consistência ao analista em sua odisseia epistemofílica? Questões ainda atuais, porque jamais superadas.

A força dramática d’O quarto do filho repousa no que se segue após a morte trágica do jovem Andrea e centra-se particularmente na relação entre o Dr. Giovanni Sermonti e seus analisandos. Assim, a crescente turbulência é apenas a dimensão externa do que internamente se desarticula no sujeito Giovanni, levando-o a um inevitável encontro com o insuportável. Ele é tomado por uma inundação de seus próprios Reais desencadeados pela morte do filho, de modo que é sobre o terreno pantanoso da contratransferência que ele passa a andar, sem sair do lugar. Declara ele:

“Há pacientes a quem nem ouço, não ouço o que me dizem. Enquanto que outros é como se (eu) estivesse no lugar deles.”

Em outras palavras, com a morte do filho, morre também o próprio analista, uma vez que o desejo de analista se dissolve. As fronteiras que delimitam seu estreito lugar se desmancham e a escuta psicanalítica se torna insustentável. O que se apresenta é um analista em ruínas por seu intenso estado de simpathia e indiferença com aqueles que lhe demandam o vazio estruturante – um analista que já não suporta mais o estrondoso real que adorna as sessões de análise. Nesse sentido, o que nos salta é da ordem de uma colisão entre o que é do Eu com o que é do Outro no tempo lógico do sujeito Giovanni. Faz-se pertinente indagarmos sobre o percurso que fundou aí um analista. Contudo, até que ponto podemos culpá-lo por isso? Quem realmente está preparado para atravessar o processo da morte de um filho?

Olhemos para Freud:

“Pai, não vês que estou queimando?”

Na Interpretação dos sonhos, pedra de toque de todo o empreendimento freudiano, Freud nos apresenta a pergunta de um filho ao pai. Pergunta que surge no sonho e denuncia a existência de algo mais-além da mera realização de desejo. Trata-se do sonho de um pai que velava o filho morto. O homem se encontrava no quarto ao lado do local onde se realizava o velório. Pediu a um senhor que vigiasse o corpo do filho. Em algum momento o pai adormece e sonha que o filho está de pé ao seu lado e lhe diz “Pai, não vês que estou queimando?”. Nesse momento o homem desperta e vê que realmente o corpo do filho estava queimando devido a uma vela que caíra sobre ele enquanto o velho que o vigiava dormia. Assim, Freud dá espessura à tese de que o sonho é uma realização de desejo na medida em que no sonho o filho realmente se encontrava vivo – esse era o desejo do pai –, porém aponta um novo elemento: o sentimento de culpa presente nesse pai.

O que escutamos n’O quarto do filho é a oração de um pai angustiado que pergunta: “filho, não vês que estou me afogando?”.

Conforme representado no filme, confrontados com morte de Andrea, os três membros da família se encontram com o impensável da morte, elemento essencialmente gerador de angústia. Não obstante, é a figura de Giovanni – o analista – que nos chama atenção por sua renúncia em admitir o que a realidade lhe impõe. Caberia aqui perguntar-nos a respeito de suas culpas inconscientes, tendo em vista que ao longo da narrativa a cada vez que Andrea se afasta da imagem idealizada que seu pai faz dele, este pai se perturba. Giovanni parece temer o desaparecimento não do filho, mas do filho conforme idealizado por ele.

Culpas que podemos entrever em algumas sequências, como por exemplo: na insistente da fala do padre que não cessa de ecoar “se o dono soubesse quando sua casa seria roubada, tomaria conta dela”, ou quando Giovanni observa que diversos objetos na cozinha têm rachaduras, quando ouve de maneira obsessiva o mesmo trecho de uma música que seria do gosto do filho, ou ainda quando entra na lama da contratransferência com o paciente que motivou sua ausência no trágico dia da morte de Andrea. “Filho, não vês que estou me afogando?”. Sua relutância é patente, uma vez que não hásinthome do analista, mas sintoma em ato. A virtude no analista Giovanni está em seu valioso testemunho do que não pode ser esquecido: a relação do analista com seu próprio inconsciente.

E desta forma o itinerário existencial da família Sermonti parece se estreitar em torno desse algo insuportável advindo da fissura do tecido simbólico que constitui a realidade subjetiva de cada um. De fato, não há saída quando as vias do simbólico não se apresentam. Do gozo não se extrai sentido. Vemos que Das Ding não vira Die Sache no Dasein dos Sermonti e, assim, o trabalho do luto claudica.

Então o que fazer diante dessa aporia? Que futuro há quando não se consegue pensar o impensável? A salvação tem finalmente horizonte quando surge uma terceira personagem, a jovem Arianna, amiga de Andrea, que apresenta fotografias que retratam um Andrea não conhecido pela própria família. Sua chegada representa uma via em direção ao simbólico, um significante inédito que dinamiza a pulsão e abre o campo do sentido, fazendo com que objeto perdido do luto seja des-investido e o decisivo encontro com o real da morte possa ser superado: deixar morrer o morto. Funda-se, então, um porvirque o filme não apresenta, mas oferece nas entrelinhas para que cada um, em sua poesia singular e a partir de seus próprios significantes, fabrique. Temos aí o espectador surpreendido ao perceber-se se colocar no lugar dos protagonistas. Um alívio.