Marleide Pak, Psicanalista da Asssociação da Refundação Psicanalítica Internacional Brasil

O Quarto do Filho é uma obra prima do cinema italiano, dirigido por Nanni Moretti, que nos leva a uma reflexão, sobre o papel do analista conjugado com sua vida pessoale familiar, e além do mais desconstrói a ideia de como o psicanalista é mostrado nas telas do cinema, o analista quieto e distante, dorminhoco, o analista como objeto de erotomania “mortificante” do paciente; ou do analista investido de erotomania, o que não representa a vida  profissional de um verdadeiro analista que ocupa o seu devido lugar, o lugar de Sujeito-Suposto-Saber e Desejo.

Quizás tenham lido de maneira equivocada a frase de Jaques Lacan: “ O analista deve fazer-se de morto.” O que, com certeza, o grande mestre contemporâneo da psicanalise quer dizer, não corresponde à realidade evidenciada nas telas do cinema.

Lacan se refere ao fazer silencio-em-si, o lugar do analista, o lugar do Sujeito-Suposto-Saber e desejo. O analista “deve fazer-se de morto”, isto é estar desarmado, ser o mais inconsciente dos sujeitos, o mais exposto aos efeitos do inconsciente. O analista não calará, fará silencio-em-si, para que o grande Outro do analisando se suscite e assim a dor psíquica do analisando será percebida e interpretada pelo analista. O fazer silencio-em-si não é ficar sem voz, que é o que muitas vezes os leigos acreditam.

Portanto acreditamos que o diretor Nanni Moretti representa muito bem esta questão na sua obra, ou seja a atuação de um verdadeiro analista. A película mostra o analista em ação, o uso da transferência e também da contratransferência e técnicas analíticas, enfim a película nos leva a pensar sobre a seguinte pergunta: O que é ser um analista?

Giovanni o personagem psicanalista da trama tem no seu setting a representação das seguintes estruturas: o psicótico, representado por Oscar, o mais problemático, pois sempre necessita de sessões extras. Oscar é o suicida, aquele que goza com o seu próprio sintoma; o perverso sadomasoquista, adicto a sexo e filmes pornôs, o candidato à análise, homem rico e poderoso que é um narcisista que aparece para afrontar o analista, mas que depois sucumbe, as neuróticas-obsessivas-compulsivas, uma adicta à limpeza e munida de atitudes repetitivas e a outra adicta a compras.

Gostaria de destacar três pontos discutidos na película, que chama à atenção: O Desejo do Analista, a Contratransferência e o Luto no discurso.

O Desejo do Analista não é o desejo da pessoa do analista, mas sim uma instância psíquica analítica, que sem saber e sem perceber ocupa o lugar do grande Outro, o lugar de Objeto da pulsão, com o surgimento do grande Outro referente, se institui a autoridade do Sujeito-Suposto-Saber e Desejo; mas no psicanalista da tela, Giovanni, podemos observar claramente que ele não consegue ficar neste lugar. O seu Desejo de Analista parece frágil e inconsistente, se torna impaciente, e a impaciência não cabe nesse lugar.

Depois da triste perda do seu filho, Andreas, Giovanni se vê diante de sua própria tragédia, uma crise profissional e familiar, perde a sua escuta psicanalítica, faz interpretações selvagens e o seu Sujeito-Suposto-Saber e Desejo se fragiliza, recoberto de dúvidas e incertezas entra em um processo obsessivo de culpa seguido de um processo Contratransferencial, passando não mais a ser o diretor da cena analítica no seu Setting, pelo contrário, põe em ato a sua Contratransferência.

O analista, Giovanni, invadido por obstáculos imaginários e Reais, se coloca não aberto às surpresas ao inesperado, se torna impaciente, e além do mais se opõe à acessibilidade do seu lugar de condutor da análise, de Sujeito-Suposto-Saber e Desejo.

Nasio diz que a Contratransferência é um perigo constante, contra o qual o psicanalista deve estar atento e lutar contra durante a sua prática analítica.

 A Contratranferência não ocorre no interior da relação do analista com o analisando, mas no interior da relação do analista com o lugar do objeto da pulsão. Portanto a Contratransferência é uma resistência do analista em ocupar o seu lugar. Ela é o resultado das influências dos conteúdos do analisando exercidas sobre os conteúdos do inconsciente do analista.

Podemos recordar a cena onde a analisanda diz: “Eu adoraria ter filhos e não tive.” Neste momento o analista pleno de pulsão de morte e culpa, abandona o seu lugar de diretor da cena analítica, e chora.

Freud em uma carta de 1910 utilizou a palavra ‘contratransferência’ para advertir os analistas do perigo de ligar-se afetivamente a seus pacientes. Para Freud a contratransferência era “uma maneira errônea”  de amar o paciente. Segundo Freud o afeto do analista para o analisando deve ser conscientemente concedido. É preciso que o analista reconheça a sua própria contratransferência e procure superá-la, não foi o que ocorreu com o psicanalista da película vivido por Giovanni, podemos perceber a sua incapacidade de seguir com as análises de seus pacientes, deveria ter buscado um analista e não somente um supervisor, como o fez.

A morte tão trágica e precoce do filho, é uma ‘situação limite’, como afirma Bruno Bethelheim na sua obra Fortaleza Vazia, onde analisa os encarcerados nos campos de concentração nazistas, onde os prisioneiros aparentemente normais, em situações degradantes e frente à morte iminente, adquiriam sintomas psicóticos e autísticos. Portando Giovanni, o psicanalista pai, no limiar de sua dor, se desestrutura não podendo mais conduzir as análises de seus pacientes, deixando-os desamparados. Giovanni não busca o seu analista, se é que o tem. Seria uma resistência do analista à sua própria análise? Seria esta uma outra vertente mostrada na película?

Em Análise Terminável e Interminável Freud afirma que “todo analista deveria periodicamente –com intervalos de aproximadamente 5 anos – submeter-se mais uma vez à análise pessoal, sem se sentir envergonhado por tomar esta medida.” Estaria Freud se referindo à inesgotabilidade dos conteúdos do inconsciente? Havia no analista da película conteúdos inconscientes não visitados. Desta forma, ou seja, fazendo a sua análise pessoal de tempos em tempos, o analista não passará ao ato e faz-se imprescindível que o futuro analista faça a sua análise pessoal, só assim poderá ser chamado de psicanalista. Podemos perceber que isto está presente nas várias reflexões trazidas pelo Diretor Nanni Moretti em sua obra La Stanza del Figlio.

Quanto à questão do Luto, a princípio não elaborado, mas ao final toda a família consegue colocar no discurso, ou seja em palavras, a saudade e a tristeza de não mais ter a pessoa física de Andreas, o filho e irmão morto tragicamente, no convívio da família.

Houve portanto o elemento unificador, o Símbolo que representa a presença na ausência. A partir do momento que colocam a perda do ente querido no discurso, houve a simbolização, a concretude do luto através do discurso, dessa maneira toda a família pode organizar os seus sentimentos e encontrar o consolo para levar a vida da melhor maneira possível, onde já não havia mais o sentimento obsessivo de culpa por parte do pai-analista.